Demian - Hermann Hesse

11:00

"Muitos se recusarão a acreditar que uma criança de onze anos incompletos possa sentir dessa maneira. Não é para esses que escrevo, mas para aqueles que conhecem melhor o ser humano. O adulto, que aprendeu a converter em conceitos uma parte de seu sentimento, menospreza tais conceitos na criança e termina por optar que não existiram também os sentimentos que lhe deram origem."
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É muito difícil escrever sobre esse livro. Ponto. Demian, apesar de não tratar de tantos temas, se mostrou, para mim, um livro tão rico e tão bem escrito, que sinto que por mais que eu tente não conseguirei dar conta de mostrar o quanto essa leitura me fez refletir e o quanto fiquei arrebatada com ela. Hermann Hesse traz uma narrativa com uma ambientação via de regra psicológica, ou seja, muitos dos acontecimentos se dão por meio das reflexões do protagonista, nos quais o narrador conta de seu passado, desde o fim da infância e da dualidade do mundo que o atormentava entre escolher seguir a vida ortodoxa dentro do seio familiar a seguir a vida sombria entre os amigos da escola, principalmente Max Demian, que surge na vida de Sinclair e o influencia de tal modo que o faz ver o mundo de modo totalmente diferente, em uma missão na busca incessante de autoconhecimento, de encontrar a si mesmo. A obra retrata fielmente um período da vida que é tão inquietante, em que começa-se a formular o caráter, além dos questionamentos típicos da pré-adolescência, das inseguranças e, principalmente, apresenta um período em que a amizade e a influência dos amigos nos parecem, muitas vezes, mais relevantes que a de nossos pais e familiares.

O protagonista é Sinclair e está passando por essa fase de transição da infância para a adolescência. Criado em uma família tradicional, religiosa e ortodoxa, ele se vê o tempo todo dividido entre dois mundos: o "mundo luminoso", do lar, do amor, da tranquilidade, aquele em que ele se sentia acolhido pelo amor familiar e o mundo sombrio, do desejo, da sexualidade.

"Eu me considerava muito mais próximo do mundo obscuro, e o contato com o mal se fazia sentir em mim muitas vezes por uma dolorosa angústia."

No início ele se envolve em uma grande enrascada por querer provar aos "amigos" que era corajoso. Ele mente para se vangloriar na frente dos outros meninos, dizendo que havia roubado maçãs, e acaba sendo chantageado por um menino mais velho e perigoso, Kromer, que ameaça contar a todos o que Sinclair "fez". Então, aparece Demian, que misteriosamente o livra das extorsões de Kromer, fazendo com que Sinclair fique ainda mais fascinado do que já era pela figura de Demian, o novo colega de escola:

"Não podia dizer que Max Demian me parecesse simpático; ao contrário, dava-me a impressão de ser frio, um tanto orgulhoso e demasiadamente seguro de seu próprio valor; eu sentia que seus olhos já viam as coisas como os olhos de um adulto, com aquela expressão, um tanto melancólica, sulcada de relâmpagos de ironia que nunca se encontra nas crianças."

Demian exerce forte influência sobre Sinclair, de modo que este último passa a viver uma espécie de idolatria pelo amigo, que apresenta a ele novas ideologias, entre elas a de que há um deus em que ambos os lados da existência humana são cultuados: o lado sombrio e o lado luminoso. E isso atrai Sinclair de modo muito particular. Demian mostra a Sinclair todo um mundo novo, muito diferente do que ele vivia anteriormente:


"Demian afirmara por aquela época que o Deus a que rendíamos culto representava apenas a metade do mundo, arbitrariamente dissociada (o mundo oficial e permitido, o mundo "luminoso"), e assim, para podermos adorar o mundo em sua totalidade, como era necessário, forçoso era buscar um deus que fosse ao mesmo tempo demônio, ou estabelecermos, junto ao culto divino, também um culto demoníaco."

A verdade é que não foi Demian quem mudou a personalidade de Sinclair, mas somente fez brotar no amigo algo que já havia ali só esperando para ser tocado. A partir dessa pulga que Demian coloca atrás da orelha de Sinclair, o protagonista passa a viver sempre em busca de conhecer a si mesmo, a sair da casca, nascer para o mundo. E mesmo que ambos passem longos períodos sem se ver ou ter contato de espécie alguma, Demian está sempre ali, presente nos pensamentos e atitudes de Sinclair, desde o momento em que o conheceu até seus dezoito anos, que é o momento da vida do protagonista em que a narrativa se encerra.

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Tão difícil quanto apontar os aspectos negativos de um livro é elogiá-lo. Demian foi uma leitura que me deixou extasiada e que, acredito e recomendo, deve ser lido por todos os apreciadores de boa literatura. Demian é um personagem tão maravilhoso que em certo momento eu me vi experimentando também uma idolatria por ele, ao me lembrar das pessoas que me influenciaram a ser quem eu sou hoje em dia. E acredito que essa seja uma das mensagens que a estória passa: ao longo de nossas vidas encontramos muitas pessoas que acabam por ajudar a moldar nossas personalidades e que deixam marcas profundas em nossas memórias, assim é Demian para Sinclair. Além disso, refleti sobre a vida que levamos, por meio da narrativa de Hesse, que por mais que tenha sido publicada no início do século passado, se mostra atemporal:

"O que hoje existe não é comunidade: é simplesmente o rebanho. Os homens se unem porque têm medo uns dos outros e cada um se refugia entre seus iguais: rebanho de patrões, rebanho de operários, rebanho de intelectuais... E por quê têm medo? Só se tem medo quando não se está de acordo consigo mesmo."

Questões sobre individualidade e coletividade são lançadas durante a narrativa, como na citação acima, na qual Demian versa sobre o que nos torna uma comunidade: o medo. E propõe que busquemos a nossa essência, citando Nietzsche com exemplo a ser seguido. Demian, por ser um romance de formação, é rico no desenvolvimento pessoal do protagonista Sinclair que, do início até o final da estória, possui um desenvolvimento psicológico visível. Antes de ler Demian, eu não imaginava que existia uma nomenclatura para romances que se passam durante a vida escolar e que abordam as questões da formação dos personagens, e isso me deixou muito fascinada, pois se há um momento interessante da vida do ser humano, um deles é esse em que transitamos entre a vida jovem para a adulta. De fato, com certeza lerei mais romances de formação, pois adoro ler sobre esses dilemas típicos da adolescência e que costumam se mostrar muito filosóficos.
Bom, falei que o livro não abordava muitos temas, mas a verdade é que ele aborda as várias nuances de um mesmo e causou, em mim, muitas reflexões.
Leiam Demian, é o que vos apelo, se querem conhecer uma obra que fale da natureza humana com maestria.

“Quem quiser nascer tem que destruir um mundo”

Beijinhos, Hel.

HESSE, Hermann. Demian. 37. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006. 188 p. Tradução de Ivo Barroso.

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6 comentários

  1. hel, eu tenho exatamente essa edição aqui na estante a ler. fiquei com mais vontade ainda agora de ler. beijos, pedrita

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    1. Olá, Pedrita. Eu li em e-book, quero muito adquirir essa edição física, mas com a capa nova.
      Bjs e boa leitura!

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  2. Olá! Esse livro é incrível~ <3
    Adorei tua resenha, conseguiste falar muito bem do livro!
    Sendo um livro de formação, como dissesse, e com a ótima narrativa do Hesse, dá para apreciar muito a leitura. Só a narrativa já é impressionante, toda a história e questionamentos que a obra aborda então...
    Uma das melhores leituras do ano. =)
    Uma das questões que mais me chamou a atenção foi a "morte" do individuo, essa questão de "renascer"... Como citasse: "Quem quiser nascer tem que destruir um mundo". Bem interessante~

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    1. Olá, Paula!
      Também acho que Demian foi uma das melhores leituras do ano, a narrativa e os personagens são fantásticos. E para fechar com chave de ouro, a temática é interessantíssima!

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  3. Que resenha belíssima! Sei o quanto é difícil elogiar um livro que gostamos muito, as vezes é até mais difícil que criticar um que não gostamos, não é? Mas fique tranquila, conseguiu me deixar muito interessada pela obriga, vou incluir na minha lista de leituras. =)

    Beijos,
    milenaschabat.blogspot.com

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    1. Obrigada, Milena! Que bom que gostou, espero que leia, Demian é um livro que, apesar de ter sido escrito há algum tempo, é tão atemporal pois trata de temas que sempre suscitam discussões interessantes, o autoconhecimento, as dúvidas, sempre farão parte da humanidade.

      Beijos!

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